28.10.09

Nenhum Olhar

E o mundo acabou. Inexplicavelmente, ou sem uma explicação que possa ser dita e entendida. O mundo acabou, como num instante em que se fechassem os olhos e não se visse sequer o que se vê com os olhos fechados. As crianças morreram, os risos das crianças, espalhados no sol e nos sábados e em agosto, morreram. O mundo acabou como uma noite lançada do céu, e nunca mais se ouviram os risos das crianças, nunca mais foi sábado nunca mais foi agosto, nunca mais houve sol. E isso que era a ausência do mundo não era nem mesmo uma ausência, não era sequer como o espaço vago onde uma pessoa que morreu costumava estar e se olha e existe quando se sente; não era nem mesmo uma ausência, porque não havia ninguém para a sentir. Era uma noite infinita que acumulava todo o medo de todas as noites desde a primeira noite do mundo. Mas também o medo não existia, porque não havia ninguém para o sentir. O lugar das árvores, as suas formas e os seus pensamentos tinham morrido. Os ribeiros, a agua fresca, o som quase silencioso da agua fresca, os ribeiros tinham morrido. Os campos largos, as ercas secas, as pedras perdidas no chão, toda a lonjura do campos, o vento sobre a terra, as searas, os campos do tamanho do olhar, a terra tinha morrido. As casas, os muros caiados tinham morrido. Os pássaros, a meio de um voo, os seus piares no fim de tarde tinham morrido. Já não havia tardes, manhãs, noites. Nunca mais o dia se levantaria lentamente, com os olhos baços numa madrugada; nunca mais ninguém, se sentaria a sonhar a calma num fim de tarde, nunca mais a noite vaguearia sobre as casas a cobri-las com a sua capa rasgada de estrelas. O mundo acabou e nem o tempo prosseguiu. Os minutos não passavam porque não existiam, como não existiam os momentos ou os olhares. O infinito era o infinito de não ser nem infinito nem nada. A morte não existia no meio de todas as coisas mortas. Não existiam os cadáveres. Tinha morrido a memória da morte. As crianças morreram e isso, que era a única coisa pela qual valia a pena chorar, não era lamentado por ninguém, porque já não havia dor, já não havia lágrimas, já não havia olhos ou peito para chorar. (...) Todos morreram, no meio de todos os homens e mulheres que morreram, como pontinhos de uma multidão gigante a morrer no mesmo instante sem poder entender que morria e que morria tudo. Todos desapareceram e não deixaram nada, e não deixaram sequer o pequeno nada que existe dentro do nada que existe dentro do nada. Não deixaram sequer os cemitérios inteiros de mortos, pois todos eles desapareceram ainda mais de tudo, todos eles morreram a sua segunda morte, ainda mais definitiva. A voz que está fechada dentro de uma arca calou-se para sempre e, das suas palavras, nem o sentido, nem o silêncio subsistiu. O homem que está fechado dentro de um quarto sem janelas a escrever parou de repente a meio de uma frase e o fim, para ele, foi a tinta que desapareceu das páginas que tinha vivido, foram as folhas de papel que fugiram de si próprias e se tornaram o mais absoluto vazio de tudo, foi a memória que se transformou nem sequer em ar, nem sequer em vento. O mundo acabou. E não ficou nada. Nem as certezas. Nem as sombras. Nem as cinzas. Nem os gestos. Nem as palavras. Nem o amor. Nem o lume. Nem o céu. Nem os caminhos. Nem os passado. Nem as ideias. Nem o fumo. O mundo acabou. E não ficou nada. Nenhum sorriso. Nenhum pensamento. Nenhuma esperança. Nenhum consolo. Nenhum olhar.


José Luís Peixoto

1 comentário:

  1. o melhor livro de todos os tempos.
    nem há palavras para descrever, perfeito talvez.. ando com esse livro para todo o lado, não me consigo separar dele. adoro. adoro o josé luís peixoto. adoro esse excerto. adoro tudo nele.
    e adoro-te a ti e morro de saudades tuas!!

    ResponderEliminar