20.6.10

Cartas I

Querida C.,

Passaram cem anos (de solidão); passaram mundos e fundos e coisas e barcos e pessoas e caros e estradas e auto-estradas e cães e pombos e carros e chuva e sol e palavras e conversas e diálogos e caras e ponto. Parámos.
Recomecemos; passaram os dias pela nossa existência, com imagens, com livros, com lágrimas, com sorrisos, com comboios que passaram e com mãos a acenarem adeus. Esta foi a minha última memória antes de te deixar ali, inerte, a ver-te diminuir com a distância e a tua mão a mexer sem grande energia e eu a olhar para trás e tu a sorrir como se fosses chorar a qualquer momento e eu a sorrir e a querer chorar a qualquer momento e assim fui cumprir o destino, e assim ficaste tu a cumprir o teu.
É isto viver; termos que cumprir a vida, as escolhas, as oportunidades, os desejos, os impulsos, assim somos, máquinas de cumprir planos, robôs de passar etapas, mecanizados, sempre mecanizados.
E agora, passou-se quase um ano, e vi-te uma mão cheia de vezes se tanto, nestes dez (?) meses. Daqui a menos do que isso vejo-te a andar de comboio como fiz eu mesma em tempos e ver-me-ás tu a atravessar fronteiras na esperança de fazer algo melhor. Estou assustada com o destino querida andorinha que vais aprender a voar, estou assustada com a solidão. Mantenho-me neste quarto na cidade onde sempre quis viver, mas já não sei ao certo se vivo aqui. Muitas vezes penso na casa, e que é isto de casa, onde é a casa?, e nunca encontro resposta que valha a pena. Muitos poetas escreve(ra)m que a casa é onde nos sentimos bem, conforto talvez, mas nem sei de que conforto falam.
Querida C., hoje devia ter-te aqui, para adormecermos a ver filmes, para chegarmos cansadas dum concerto no Arcádia, para fazermos uma curta para a prova de criatividade da escola, para fazermos alguma coisa deixada lá no passado onde as nossas vidas se cruzaram. Tenho-te em cima da mesa com o almodôvar, tenho-te nas palavras, mas não te tenho. E eras apenas tu que me fazias falta, apenas tu, com o teu cabelo preto à emily, com o teu corpo magro e desajeitado, com o teu sorriso meio tímido meio feliz de quem tem grandes sonhos, com o anel da tua avó no dedo.
Querida C., hoje devíamos ler José Luís Peixoto, ou Valter Hugo Mãe, ou Pedro Paixão, ou conversar, conversar apenas porque ainda sabes sorrir.
Querida C., voa e encanta o mais frio dos corações, vejo-te crescer daqui, ou dali, ou de qualquer parte onde a estrada me leve.
E amo-te, "porque és tu, porque sou eu..."

3 comentários:

  1. querida. passou só um ano. mas foi tanto tempo. a verdade é que a c. que conheceste está diferente. como a i. que conheci. mas iguais. crescemos. acho que é isso. crescemos. ás vezes também me fazes uma falta enorme. enorme. quando vou ver filmes ao jumbo com alguém e me dizem "então? vamos!!" e eu penso: vamos? já?. contigo não íamos. ficamos ali. e pronto. conheci muita gente este ano. nem parece meu. eu? a conhecer pessoas! até me dá vontade de rir. o que me faz falta são os teus olhos enormes e verdes que toda a gente elogia antes de olhar para ti. és muito mais que uns olhos verdes bonitos. faz-me falta ver o teu entusiasmo a falar dos escuteiros. nunca mais vi nenhuma pessoa a falar dos escuteiros como tu. faz-me falta andar contigo na rua e andarmos sempre aos encontrões uma com a outra. ahaha. no outro dia. no último dia de aulas. estava a professora de português a falar que os corredores sem nós iam ficar mais tristes. sem as nossas conversas. sem os nossos risos. baixei a cabeça quando ela falou isso. e só me lembrei de duas pessoas. tu e o-tal-amigo-que-te-falei-que-conheci-este-ano. lembrei-me de nós. a passar nos corredores. a rir. a comentar tudo. a programar coisas. a falar dos testes. a falar de macs. a falar de música e livros e filmes e tudo. nós com dezassete anos. quandodigo que: aprendi tudo contigo. não estou a mentir. nem a ser simpática. aprendi tudo contigo. aprendi a ser eu. tu és o reflexo do que eu queria ser mais não sou. mas tu és. (lembras-te disto? escreveste na carta. que ficou no asfixia. eu acho o mesmo).
    "nada acontece por acaso". hei-de amar-te sempre. hás-de ser "a" amiga sempre. quer estejas lá. quer eu esteja cá. quer estejamos juntas ai. ou separadas ai. hás-de ser sempre a i. do cabelo laranja (como escrevi no telemóvel da primeira vez que me desde o teu numero. lembras-te?) e eu hei-de ser sempre a c. e nós seremos sempre nós. "porque és tu, porque sou eu..." amo-te :) <3

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  2. Tu escreves lindamente. Estou espantado pelo que li em todos os outros posts e neste.

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  3. não sei quem é a C. mas adorei as tuas palavras e adorei as dela, no comentário.
    « a casa é onde nos sentimos bem, conforto talvez, mas nem sei de que conforto falam » - apesar de ter lá casa, nem ter ninguém .. Londres foi onde eu me senti realmente em casa. à coisas que não se conseguem explicar, nem compreender.

    também eu adorei o filme. adorei aquelas palavras de sabedoria. e tu, minha Inês, estarás sempre no meu coração. até hoje, nunca conheci ninguém como tu.

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