3.10.10

Casa do Surdo

ocorre-me o quão longe estamos, e alegro-me com isso. Tu sabes como sou, quem melhor que tu, que és exactamente igual? A distância nunca incomodou, nem incomoda. Ambos gostamos de a manter, ambos a mantemos, sempre, uma distância ímpar e imprescindível. Lembro-me da tamanha estupidez que cometi ao deixar-te duas gavetas cheias de livros, cheias de mim, permitindo-te, sem pensar nisso, o acesso livre ao meu desassossego. Fui uma idiota. Por outro lado, não poderia jamais deixar apodrecer todas as páginas, todas as letras, todas as histórias, dentro de duas gavetas rodeadas de estranhos, incompreendidas tão vilemente, jogadas assim no âmbago de corações apodrecidos, desprovidos de emoções. Temo por mim, por saber que vais quebrar a minha barreira e vais infiltrar-te na muralha, temo pelo caminho que tracei que vais percorrer sem que eu te tenha permitido isso, mas que forçadamente deixo que percorras sem ter mais nenhuma palavra a dizer. Sei ao menos que honrrarás esse castelo de papel que construí, essa biblioteca de sonhos trancados na janela, esse mundo que sempre imploraste por ver, e agora irás conseguir usurpa-lo. Temo por mim, e por ti ao mesmo tempo, porque o descobrir nunca trás verdadeiras bonanças. E hoje estou longe demais para muita coisa, estou verdadeiramente longe, mas tu sabes porquê, sempre soubeste porquê, sempre soubeste que mais dia menos dia eu abandonaria o campo de batalha, estava já farta da guerra, e tu sabes como sempre a destestei. Talvez por isso me tenhas dado carta branca, e me dispensaste tão facilmente da luta. Agradeço-te por isso. Não que agora esta seja melhor, mas haverá sempre guerra, já me apercebi disso. De qualquer forma, estou aqui, e não há volta a dar. Não me arrependo de um único passo dado no abandono, um único passo. E diria novamente adeus a toda a vida. Estou a crescer, chove lá fora, e eu estou a crescer. Estou retrassada por dentro, e aptece-me chover por mim a fora a todos os segundos que passam, mas estou a crescer. Tu sabes que perciso de estar longe, e esta distância em mim é a maior liberdade que alguma vez consegui, e por isso deverás contentar-te. Sei que sim, porque farias o mesmo. Sempre fizeste. Sempre fugiste. Vagabundos é o que somos, vagabundos de nós mesmos, do mundo, de tudo. Deixa-me estar. Sabes que tornarei, daqui a muito tempo espero, e aqui o tempo é tão vagaroso. É uma doce turtura viver aqui, não sabendo nunca o que as nuvens trarão. Fico massacrada cada vez que o sol me bate na janela, e não me deixa dormir, esta prisão é de uma amargura tal que chega a saber bem, por mais não saber. Talvez amanhã mude os móveis de sítio, neste sítio de três metros quadrados quase quatro. Talvez vá ao supermercado, ou talvez compre umas botas de água para não molhar as meias. Ou talvez tu te ponhas a ler a noite inteira, durante muitas noites seguidas, e assim que acabes, talvez eu morra, por ja saberes tudo.

2 comentários:

  1. exactamente: 'nunca deixes de escrever.' sabe tão bem vir aqui e ler tudo o que escreves. és linda :)

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