6.11.10

Indústria.


eu quero voltar a esse tempo em que os meus olhos brilhavam. Não por estar apaixonada, não por estar feliz, mas por estar em paz. Quero voltar a esse tempo em que os meus olhos brilhavam porque estavam limpos, limpos de mágoas, de saudades, de dores. Quero voltar a uma pele macia e lisa, sem chagas, sem cicatrizes, sem nódoas negras, quero voltar a sentir-me fresca como qualquer cascata que morre no rio, quero sentir o meu corpo de novo, sem que os ossos estalem, sem que a cama faça mossa, sem que me oiça meter os pés na estrada quando ponho um pé à frente do outro, quero voltar a uma Casa; a uma Casa onde não haja turbulência, onde não existam passados, nem pesadelos, nem monstros debaixo da cama. Quero achar a minha visão que se perdeu, a minha cabeça, de novo, quero voltar e apagar o dia em que deixei de cozer à máquina, apagar o dia em que disse sim, todos os dias em que disse sim, que devia ter dito não. Quero voltar atrás para retalhar os buracos do passado e desenhar uma vida perfeita
e depois quero voltar aqui, exactamente onde estou, sentada nesta cadeira, dentro desta mesma casa. Quero voltar atrás perguntar ao meu pai onde foi que nos matámos, porque a viagem poderia ter sido tão mais rica. Quero voltar atrás e perguntar "porquê mãe?" o porquê de tantas coisas. Quero voltar atrás e dizer à minha avó Maria já morta, que a amo e dizer ao meu avó Zé, já morto, que ele foi o maior Homem do seu tempo e do meu. Quero voltar atrás e ficar até ao fim, de todas as vezes que fugi a meio e dizer "não está bem" de todas as vezes que disse "está", e ler "Ética a um Jovem" do Fernando Savater que nunca cheguei a acabar. Quero voltar lá atrás e ser uma aluna aplicada e deixar este arrastar de pés lá atrás, lá no fundo, lá enterrado. Quero voltar atrás e participar na protecção dos animais, e voltar lá atrás e fazer tudo ao contrário, nas mesmas circunstâncias, para ver qual era o resultado.

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