4.6.11

Crónicas de Cov #6


Em casa de estudantes, há sempre quem se perca no branco das paredes. Durante anos e anos, vidas até, vêm de toda a parte e assentam aqui. Os que chegam depois dos que chegaram antes (que também houveram de chegar depois de alguém que chegou antes - e assim se faz o ciclo), como eu, pela primeira vez (chega-se sempre pela primeira vez), deparam-se com o vazio de uma habitação medonha. E o choque, inicial, não é coisa bonita de se sentir. O espanto, do que se vê, ao abrir-se a porta da frente, pela primeira vez, para depois seguir o trilho do quadrado que lhe fora destinado, é um bater forte no coração. Não pela casa em si, que será habitada (novamente) durante os próximos nove meses, mas por tudo o que isso significa: Liberdade - em todos os melhores e piores sentidos poderei dizer que me senti livre quando cheguei, pela primeira vez, aqui. Senti-me até livre de mais, tão livre que tive medo - O largar tudo à aventura durante um ano é coisa corajosa de se fazer. Eu pessoalmente, não me acho corajosa, mas tinha um sonho, e vim cumpri-lo. Com falta de coragem ou não, voltei costas à vida, e dei asas à vontade de "conhecer" alguma coisa nova no geral. Ridículo será dizer que estava preparada para isto. Não estava de todo, nem para a mais mínima adversidade, e o pior, não tinha sequer consciência disso. Nunca me hei-de arrepender do que fiz, e todos os dias agradeço-me a mim mesma ter tido este sonho - que vem desde pequena, quando via na televisão pessoas a viajar por ai - mas foi como se diz um tiro no escuro, que hoje já me fez ser melhor, não tenho dúvidas. Acho sempre esta situação hilariante, temos um sonho, e vai na volta acha-mo-lo, mas depois, já dentro do sonho, apercebe-mo-nos que provavelmente era um sonho um tanto ou quanto grande, o que fazer? - Crescer com ele. Não há outra maneira de fazer isto, temos então que nos tornar maiores do que o sonho, custe o que custar, dê por onde der.
Eu escuteira desde sempre, bem que me habituei ao peso da mochila às costas, que foi sempre aumentando com a idade, a desenverdar mato por esses montes e montanhas afora, e às vezes, até quando nos chovia granizo a meio da noite escura, e nós ainda a meio do caminho, lá continuava-mos ensopados até aos cabelos, com um sorriso na cara. Ora, a mim, atravessar ribeiras, caminhar com chuva, pular serros, construir mesas, fazer nós, esfolar os joelhos, ou passar fome em campo, nunca se afigurou de todo um problema, pois sabia, de consciência tranquila, e sorriso grande, que ao chegar a casa, ainda que sem conseguir andar, tal eram as dores, levava o espírito cheio, e isso, sempre me bastou para continuar a fazer as mesmas caminhadas, a sentir as mesmas dores, a passar a mesma fome.
Chegar aqui, foi quase o mesmo. Em vez da mochila às costas, trazia uma mala com 20kg de vida lá dentro, e em vez das botas de montanha, trazia uns Vans rotos. O princípio foi o mesmo: a alegria do início - onde ainda não há bolhas nos pés, nem joelhos esfolados, nem chuva em cima da cabeça - tive mal, vim logo para um dos sítios mais chuvosos de todos - irónico?!
Se houver por aí escuteiros que leiam isto, saberão certamente, e partilham-no que durante um Raid a frustração pode ser tão grande que a vontade de desistir passa-nos então pela ideia - para isso existem os carros de apoio que vão sempre perguntando se está tudo bem... - eu, nem melhor nem pior escuteira do que os outros todos, muitas vezes em Raid me passou isso pela cabeça, o desistir: alturas em que a frustração era tão grande, e as dores tantas, e a mochila tão pesada que acreditava que não iria chegar ao fim do trajecto. Durante todos os Raids que fiz, deparei-me sempre com estes dois pensamentos antónimos: o desistir e o continuar. O desistir significava o fim das dores, de todas as dores, mas a perda da alegria de chegar. O continuar, significava o agravamento das dores, mas o orgulho de ter percorrido todo o caminho em equipa e ter cumprido a meta. Em todos os Raids que fiz, nunca me lembro de ter desistido de nenhum, não por ser forte, porque muitas vezes fiquei para trás a passo lento, mas por querer sentir a alegria do chegar. Uma alegria que preenche apenas quem chega, e essa alegria, era tão forte de se sentir, de se partilhar, de se acolher, que foi sempre ela que me moveu.
Aqui, houve momentos, que me desencontrei dessa alegria. E chorei, e quis desistir, e queria mesmo. Tantas vezes questionei até o sonho, até a minha preparação, até a minha vontade. Nunca se afigurou fácil, mas nunca pude desistir, embora o tenha desejado. Deixei-me muitas vezes ir abaixo, e desejar estar noutro sítio qualquer, com mais sol, com pessoas mais quentes, com mais alegria. Mas estava aqui, e aqui iria continuar. Agora, tenho corrigir as quedas que tive durante o ano, os momentos em que chegava a casa cansada de falar algo que não me era familiar, cansada de ver cabelos loiros, e vestidos de alças com 12º negativos, cansada das falsidades de todos os sorrisos. Depois chegava, e havia sempre uma mão na cabeça, um copo de café quente, uma conversa em pronuncia francesa, e isso sabia-me bem. Aqui, nesta mesma casa, neste mesmo quarto, chorei vezes sem conta, sorri vezes sem conta, cantei, penteei cabelos, escolhi roupas, pintei olhos, tirei fotografias, ri, pulei, dancei, estudei, sofri, recebi colinho, dei colinho, comi cereais, bebi champanhe, celebrei aniversários... Aqui, onde agora escrevo, aconteceu-me uma vida. Uma vida de momentos inesquecíveis, e outros vagos, mas uma vida cheia. Da alegria do chegar, aquela dos escuteiros, não posso falar ainda, ainda não cheguei ao fim, embora já me sinta ter chegado a muitos sítios, mas a caminhada até aqui, ainda que de Vans, não tem sido fácil. Ando a caminhar à quase nove meses, e muita pedra tenho encontrado no caminho. O caminho, acaba não tarda, a chegada já se avista firme. Se chegarei cansada, em dúvida, e levo a mala mais pesada, pois como ele dizia, as pedras do caminho, guardei-as todas.

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