8.12.11

Sobre a época...




O surto natalício que invadiu isto aqui e, a minha cabeça, tem pois uma razão de ser. No meu perfeito juízo não mudo de opiniões quanto aos podres do Natal do ano para o outro, no entanto, de um ano para o outro, e afastada da realidade que sempre conheci, transformou-se muita coisa na minha cabeça. Bastou-me passar um Natal sozinha, longe de casa, do país, da família e dos amigos, para conseguir entender melhor do que a época significa, coisa que, até então não me havia passado pela cabeça. Passavam-me sim outras coisas, ceguei com a revolta que me invadia ao ver todo o consumismo da época, toda a onda de sensibilidade e bonança que mal chegava Dezembro, parecia invadir todos e mais alguns, quando, no resto do ano, ninguém se dava ao trabalho de fazer nada. Isto eram e são coisas que ainda mexem comigo, no profundo do meu ser, este tipo de publicidade ainda me magoa o bom senso, no entanto, aprendi que não se pode mudar o mundo de um dia para o outro, e, se não o podemos mudar, podemos talvez, aceitar-lhe as falhas. Foi o que fiz, passei à aceitação de algo que não consigo controlar, porque não consigo, mas consigo mudar em mim o que não gosto, que me parece ser a melhor maneira de aceitação. Porque uma coisa é levarmos arroz para quem tem fome, tudo bem, não me oponho a isso, mas quem tem fome, não tem fome só em Dezembro, existem outros iguais onze meses, em que o arroz faz falta. Como também faz falta um bocadinho de atenção. 


Nos meus passeios pela cidade, ou no meu caminho até casa, tenho-me cruzado e conhecido um sem número de anónimos, vindos sabe-se lá de onde, que, de uma forma ou de outra acabam por me falar, nem eu sei bem porquê. Ao longo dessas conversas, com as mais diversas pessoas, tenho ouvido histórias de vida, inacreditáveis, muitas vezes das próprias senhoras que incontestavelmente aprumadas, dos altos dos seus casacos de pele e do seu baton rouge bastando-lhes um olhar directo nos olhos, desfazem as lágrimas todas duma vida, enquanto esperam pelo autocarro. Tenho também conhecido senhoras modestas, com os sacos 20% reciclados dos supermercados, cheios de legumes, que me olham com ternura e me dizem que sou parecida às netas, que estão no estrangeiro ou que estão no norte ou que estejam onde estiverem estão longe nas vidas delas e que para trás vão deixando o passado, para uma dedicação constante ao futuro e, depois essas senhoras que me olham como se eu fosse as suas netas longe e me sorriem com ternura, contando-me com alegria porquê de essas tais netas estarem longe; ou porque casaram, ou porque estão a trabalhar. E depois com os olhos a brilhar com que jubilosamente dizem quantas estão bem sucedidas com o curso feito. E ainda assim, aqueles olhos que vêem em mim netas e sobrinhas, olham-me tristes, no vazio da solidão agarrado aos sacos 20% reciclados dos supermercados, e quando a viagem acaba, tem sempre de acabar, é com uma palmadinha no ombro que me dizem, muita sorte para a vida, tenha um feliz natal «filha». E esta «filha» toca-me lá no fundo, às vezes sinto mesmo a vontade de ser esse sem número de filhas por ai, nas suas vidas, ser uma dessas filhas e, sentar-me um pouco mais do que o tempo que demora a viagem de autocarro, para ouvir mais um bocadinho das histórias, das viagens, da educação, de um outro tempo que já passou, mas vive intenso nas cabeças, e são tantas as cabeças cheias de recordações. 


Conheço também dos meus passeios pela cidade, alguns dos tantos sem-abrigos que páram quase sempre nos mesmos sítios, Lisboa é sim uma cidade grande, mas é pequena, quando a conhecemos mais a fundo. Os sem abrigos nunca me falam, não sei se me vão conhecendo ou não, para mim é mais fácil, estão sempre lá por onde passo mas, quando eu passo, eles não me vêem, sou só mais uma transeunte, invisível, igual aos tantos outros que sobem e descem, descem e sobem as mesmas ruas. Embora no outro dia, subindo a rua, passou por mim uma já conhecida sem-abrigo, magra, pálida, nauseabunda, cruzámos olhares numa milésima de segundo e, ela, sorriu-me. Ainda não sei se me sorriu por me conhecer, ou se me sorriu por ter apenas sorrido, mas, sorriu. E o ter-me sorrido foi bom. Não foi por ser Natal, ou por eu lhe ir dar moedas, nunca lhes dou nada, nem moedas, nem pacotes de arroz, mas olho-os, observo-os, e depois eles sorriem-me, a mim, eu que nunca lhes dei nada, nem nunca lhes ouvi as histórias, nem sei os seus nomes, nem faço ideia de quem sejam, mas passo na rua e ganho assim, um sorrido cruzado entre mil corpos, mínimo, rápido, avassalador. 

Depois, há os músicos, e os artistas da rua, muitas vezes vejo o Nica lá pela rua que desce, com a sua recente paixão, a marioneta, com que brinca e com que a brincar provoca sorrisos, os mais diversos sorrisos; envergonhados, tímidos, alegres, críticos,  Tenho-o encontrado algumas vezes sempre lá no mesmo sítio, e quando o encontro fico sempre a falhar-lhe um bocadinho, e depois ele convida-me a sentar-me ao lado dele e da marioneta, e eu sento-me, e as pessoas que vão passando e me olham, estranham-me. Porque haveria de estar ali sentada? Todos os jovens se sentam por ali e ninguém acha estranho, mas se eu me sento pelo mesmo sítio e tenho ao meu lado alguém que brinca com uma marioneta, sinto olhares fulminantes. Diria que ninguém está habituado a marionetas, ainda. Depois do Nica, há também um malabarista, que me leva a crer ser do Chapitô, não sei bem porquê. Tenho-o encontrado algumas vezes, embora me seja já familiar, tenho pela certeza de que não me conhece, mas guardo na recordação algo que aconteceu no verão, estava sentada numa esplanada, entardecia, e eu, bebia café enquanto focava o olhar num ponto e não pensava em nada. Algo me distraiu, e olhando para o lado vejo um Diablo a esvoaçar entre mil rodopios e a cair direito na linha que o movia. Adicionado à linha, alguém com a cara pintada de branco e uma blusa às riscas, qual mimo rebelde dos novos tempos, o meu olhar petrificou-se no Diablo, uma exibição artística grátis, ali mesmo lado a lado, ao lado de toda a gente, sem ser pensada, orgânica, impulsiva, alegre. O Diablo pára os rodopios, e eu, inconscientemente bato palmas frenéticas, olho em volta  e todos me olham com repugnância, enquanto vão distribuindo moedas ao artista, («dinheiro zangado» diriam os personagens da peça do Tiago) e, quando toca a minha vez abro a carteira e no meio de papéis nem uma moeda, ao que digo, acho que nem sequer tenho moedas para te dar, ao que me responde, não faz mal, só as palmas já valeram todas as moedas que poderias ai ter. Depois sorri-me e no meio de mais umas palavras vai-se embora. Tenho-o voltado a ver algumas vezes, em vários sítios, sorrio-lhe quando o vejo, mas ele não me conhece, no entanto sorrio-lhe sempre, não para que se lembre de mim, mas para que saiba que alguém lhe admira a arte, embora quase nunca tenha muitas moedas para lhe dar. A estes juntam-se-lhe mais uns quantos, guitarristas que tocam nas noites do bairro, pessoas que cantam quando alguém faz a festa, músicos sem fama nem proveito que fazem música aqui e acolá, pintores sem destino, escritores escondidos, um sem fim de artistas, incompreendidos, solitários, transparentes, que deambulam por ai, e ao andaram para um lado e para o outro nos alegram, e nos alegram com arte, a deles mesmos. 


Por mais incrível que pareça, as pessoas que menos gosto de conhecer na rua são os tais pseudo-intelectuais, pessoas «de bem», educadas, estudiosas, inteligentes (?), que vão aos teatros e vão aos cinemas, e usam roupas caras, sempre bem aprumados e tratados, que usam palavras caras e reviram os olhos quando alguém menos apresentável lhes fala e quando falam levantam o nariz. Conhecem bem a arte mas só das portas dos teatros para dentro e pagam ou não pagam os bilhetes e têm contactos e depois acaba o espectáculo e vão para as suas casas, deitarem-se nas suas camas e o mais que aproveitaram da arte que viram foi a beleza ou não das imagens e no fim não lhes resta muito mais do que a imagem irreal de que tudo não passa duma história, manufacturada, que pode ou não ser intensa, mas que no fim mais não fica do que a imagem do que se viu, que abandonam mais rapidamente do que a acolheram. Pessoas que se calhar dão imensos pacotes de arroz em Dezembro, mas depois se esquecem de sorrir quando passam, e não olham, nem vêem nada, mas fazem compras aos mais queridos e coleccionam sacos e sacos de prendas para o Natal que não na noite de 24 ou quando tiverem tempo, e quando se rasga o papel, deitam-se de novo, sem emoção pelas prendas, caras ou não, que deram e receberam, quando no fim, um único beijinho na cara, de boa noite era suficiente... São destas pessoas que menos gosto de conhecer, as que pensam que já sabem tudo, e são bons a saberem tudo, mas depois não querem aprender mais anda, porque nada está acima deles, e não conhecem o Nica e a sua marioneta, nem o malabarista da rua, nem o Prof. Daniel com o seu gorro preto de pintor parisiense, e a sua barba branca, grande, que aos quase 90 anos entrou no mestrado de pintura, e ainda assim é invisível. São estas pessoas que eu não gosto de conhecer na rua, aquelas que também não se interessam por conhecer quem lá está. 

E, ao viver estas coisas, penso no Natal, e após um ano passado, sozinha numa casa de madeira, longe, muito longe, com um Dezembro branco, e frio, e alguns desconhecidos em casa, a jantarem comigo, e com mais duas pessoas minhas que me visitaram, o Natal de Dezembro, ganhou todo um novo sentido. Porque há um ano atrás, alemães, franceses, nigerianos, russos e portugueses, juntaram-se todos numa sala, para celebrar uma noite, do último mês do ano, e não havendo prendas, houveram postais, e piadas, e comida internacional, e não houve muitas diferenças, nem houve muito glamour, mas houve algo a que se chamou casa, que naquela noite foi Casa e família de todos. E isso, mudou algo em mim, transformou na minha cabeça a ideia de que o Natal é mais que pacotes de arroz dados em Dezembro, e mil compras transformadas em presentes, pode também ser um jantar de anónimos dos quatro cantos da terra, ou um jantar quentinho, com a comida da avó à noite, e uma tarde inteira de filmes na televisão com as crianças da família, o Natal pode ser isto, pode ser só isto, a alegria de estamos juntos, seja lá onde é que estamos. O Natal para mim é isto, o Natal é isto e nada mais. 

2 comentários:

  1. Digo-te que ouvir Frank Sinatra ao ler os teus textos torna-os ainda melhores, nada como dois artistas juntos.
    Sendo uma crítica à época e principalmente às atitudes que nós, sociedade, temos e deixamos que os outros as tenham, não poderia estar mais de acordo.
    Como podemos dar um pouco de nós, apenas no Natal? Como podemos deixar pessoas a morrer à fome durante 11 meses, no entanto, em Dezembro, todo o Mundo acorda para a realidade, não porque querem ser solidários e ter compaixão mas sim porque o outro também deu o tal pacote de arroz e se não o fizer torna-se menos 'pessoa'!
    Pessoa essa que durante todo o ano é ela própria sem fingimentos, sem compaixão, sem um pingo de solidariedade mas no Natal transforma-se completamente, apenas porque é Natal e fica bem !
    Solução: Dar tudo, até à última gota. Tudo o que tivermos disponível naquele momento daquele ano, não esperar nada em troca porque se essa pessoa é necessitada não é monetariamente que vai retribuir!Lembrar-se da pessoa necessitada durante todo o ano, não precisamos de publicidades da Popota a relembrar-nos que o Natal está mesmo à porta e que não fizemos nada para ajudar o próximo.
    Doar às vítimas de catástrofes naturais várias vezes. Pois o que a Natureza destrói em segundos o Homem não reconstrói em pelo menos 15 dias que é o tempo que a comunicação social 'gasta' a informar-nos do estado das vítimas.
    Que 2O12 nos una enquanto Pátria e nos faça repensar as nossas atitudes, é tudo o que quero este Natal

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  2. Ai Inês.
    Quando não andarmos tão trocados em relação a moradas, pago-te um café em troca dumas histórias.

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