28.5.09

10.


E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância - irmãos siameses que não estão pegados.


Bernardo Soares, Livro do Desassossego

6 comentários:

  1. é mesmo -.-' mas um texto básico já não é discutivel. já tudo faz sentido. que raiva. é isso e eu dar uma resposta mais rica, falo, calo-me e ela diz: é mais ou menos. diz alguém o mesmo por palavras simples. É isso mesmo. E aí vai uma ovação de palmas x)

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  2. AI!

    Acreditas que hoje - um dia particularmente difícil - me veio este excerto à cabeça?
    O Livro do Desassossego... que grande livro! E este excerto... bem, pode muito bem servir de auto-retrato.

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  3. um dos meus textos favoritos do livro do desassossego... it suits me too! :) nice blog!***

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  4. ou pelo menos que sejam ditas de uma forma subtil.

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