17.10.09

O chá dissipou-se sobre o seu próprio fim.


O chá dissipou-se sobre o seu próprio fim. O último trago, do último gole, numa chávena já quase fria, com um líquido outrora quente, agora jaz inexistente e frio. Ainda agora, um passado inequivocamente recente, este chá, que já não existe, existia e lograva largar os seus aromas pela água que fervia. Agora, nem a água ferve, nem o chá se dissipa. É triste o fim, qualquer que seja. Como este chá que acabou, que se desvaneceu silencioso, por dentro da garganta de quem o bebeu. Rebeldes, assassinos, beberem chá como quem bebe gente, como se fosse ainda, algo que se devesse beber. Não é. E perante esta fraqueza humana de beber chá com a violência com que o chá se bebe, destruo-me de mim mesma, e paro. Esta noite o nono andar parece-me uma queda demasiado pequena, demasiado medíocre, elementar. Azares. Muitos azares. De azares o mundo cheio vive. De sortes poucos lhe restam. Mas quem bebe chá sabe, que o maior azar não é beber chá, é ter chá p'ra não beber. E a subtileza de todos os pensamentos, como a sua inteligência, não está em nós, nem aqui. Está no chá que se funde com uma água demasiado quente, e ainda assim coexistem numa emoção única e definitiva. Quem se vai lembrar de quantos chás são bebidos por quem não os deve beber? Por quem não respeita nem vê nem sente esta fusão de que falo, por quem não percebe nada de chá, como eu não percebo nada de chá, e mesmo assim o bebe com orgulho e preceito pensado que algum dia chegará a entende-lo. Não o entenderá. E ainda assim, continuam bebendo chá como quem bebe leite ou café, ou qualquer outra bebida ordinária como todas as que existem por ai, fora o chá. Quem bebe chá, pensando que sabe bebe-lo, deveria a cada gole, reflectir sobre a sua verdadeira essência, e assim, bebendo-o compreenderia-o. Mas hoje, já ninguém bebe chá pelo prazer que se lhe dá, bebem chá, porque à falta de melhor, há sempre um chá p'ra beber. Não há. O chá, data de uma realidade ambígua demais para ser aqui explicada, o chá, já vem de muito mais de trás do que eu posso algum dia entender ou explicar. Ainda faltava ao mundo os mundos, já alguém haveria de estar a beber chá. E hoje, deparo-me com pessoas que bebem chá, que não sabem o que bebem, pessoas que bebem chá que, não sabem ao que vêm, nem porque bebem chá. Desconhecem completamente o sofrimento que levou ao chá a formar-se chá, desconhecem o sofrimento dos que apanharam o chá, dos que levaram o chá, dos que o beberam numa primeira mão para saber o que bebiam, e não sabiam de certo. Desconhecem debaixo de quantos sóis andaram gentes, de quantos céus, de quantos infinitos quilómetros pararam e recuaram para haver chá, para que hoje alguém sentado numa explanada de verão bebesse chá, sem gosto pelo que bebe e sem humildade pelo que se fez até que se bebesse o chá. E ninguém pensa nisto, ninguém entende que ainda hoje debaixo de sol ou chuva ou vento ou tempestade, há sempre alguém a esgotar-se para que outros bebam chá. Há sempre alguém, que como o chá, se dissipa, entre os aromas do mundo, como o chá entre os seus próprios aromas. Já a minha avó, já a mãe da minha avó chá fazia, como acredito que a sua mãe também o fizesse, esse chá, outrora humilde, outrora puro e feliz. Esse chá que se poderia orgulhar do que era. Agora, que vejo eu? Chás comercializados como se não tivessem história, caixas e marcas e embalagens sem sentido nenhum. Mas que fizeram ao chá? Ninguém vê nada, ninguém sabe de nada, mas bebem chá, como eu bebo chá, como todos o bebem. E que sabemos nós, para pensar que temos algum direito de beber chá como o bebemos? Não temos. Mas ainda assim, reles raça, não sabem ao que vêem, mas bebem chá e bebem-no com gosto, ainda por cima! O chá antes de beber conhece-se, depois de se conhecer, sente-se com os olhos, o nariz e a boca. Um corpo inteiro uma chama acesa e mesmo assim é pouco para aquilo que um chá vale!...

1 comentário:

  1. Nunca ninguém irá escrever algo tão bonito sobre o chá. mas tens razão em relação ao chá, tens razão sim! :) <3

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