10.11.09

Creases


Não há sal na estrada, não há abrigo a um desassossego constante, não há garagens.
Não são feitos sonhos em massa em fábricas com grande movimentação, comem-se ovos com leite com café de cevada ao almoço.
Não existem as pessoas, porque as pessoas são fabricadas nessas fábricas com grande movimentação, cheias de movimento, e envolvimento constate em coisas sem interesse nenhum, desinteressantes ou interessantes conforme o melhor sentido a atribuir, que lhe atribuem.
Não há vícios, há vícios guardados em caixas no meio do frigorífico, e não sei escrever frigorífico. A chuva passa pelos corpos inertes no inverno dentro ou fora. Passa a chuva mas não passa a gente, a gente fica sempre, sempre no mesmo sítio, levando com as gotas que caiem do céu. Na cidade chove, como chove no campo ou em qualquer sítio que exista, ou não exista. Chove na natureza primária ou manufacturada, e afinal não chove nada.
A chuva não existe isso são coisas da tua cabeça. As pessoas não existem, isso são corpos que inventas para não te sentires tão só, mas no fundo, vão-se aproveitar de ti como se existissem de verdade. É isso que a gente faz, aproveita-se da gente.
Os meus pés descalços nos teus pés descalços, sem pés nem mãos nem aguardente que nos queima, não nos queima, mas pensamos sempre que sim, porquê, não sei.
A estrada passa, como se não passasse, a gente não a vê, não a vê porque não a quer ver e a minha cabeça anda à roda como um comboio qualquer a dar a volta ao mundo. Movimentação abstracta, abstraída, social económica, individual.
Corpo frio, envolto nas teorias e metafísicas que a gente inventa todos os dias, incapaz, inerte pouco fluente numa linguística cosmopolita, pouco fluente ainda assim.
Absorção, gordura cabelos oleosos em cabelos secos, tesouras que cortam o fundo da pele no início da tua carne, despojo ósseo da tua própria ruindade, a tua.
Inteligência, primoração divina de uma afirmação qualquer, iluminação quotidiana, inteligência é não ser sequer inteligente e não saber nada sobre isso, escureceu e vai nevar.
As minhas mãos frias nas tuas mãos quentes não significam nada, nem um sinal nem uma esperança interna, a gente, não sabe que amanhã a gente acorda e vai andando no mundo como se o mundo andasse em nós e a gente engana-se com isto e a gente deixa-se enganar, porque tapamos os olhos às portas da meia-noite como quem quer dormir descansado.
Não é nada do que devia ser, ninguém é um projecto facilitado, um relatório elaborado esquematicamente, um trabalho por entregar, ninguém é um 19,2 numa nota final de fim de curso porque dezanove virgula dois no final do curso não existe. Nada existe e os momentos são só a dissipação de acções que brevemente esqueceremos. Ninguém tem nada a ver com isto, nem quer ter, a gente não sabe de que matéria é feita, e mesmo assim querem viver com vontade própria. Não há vontades próprias mas a gente, não sabe disto, pensam que sabem, mas a gente, é amadora no guião, bela representação primária sobre o que é que devia ser e é isso ao contrário. A gente, é medíocre.
Cheira a alface com maçã cortada as rodelas no alto da chaminé pelo natal. Cheira a pão frito com sumo de laranja e azeite estranho. Mundo estranho.
Estranho é este céu vermelho cor de sangue, vê-se azul, sem nuvens ou com algodão doce lá em cima. Desventrado, nevoeiro ao abrigo duns olhos quaisquer que de meus nada têm. Isto não é amor, a minha mão nos teus cabelos, os meus olhos nos teus olhos a tua mão no meu corpo, isto não é nada, senão uma assimilação doméstica como um carneiro morto na estrada. Morrer é não sobreviver aos dias de poluição a que a gente se submete, morrer é não ler nada, não saber nada, não querer ir a lado nenhum. Não viajar com as pernas não é morrer, é estar disposto a viajar com a alma, qual viagem mais profunda.
Eu não quero morrer por dentro, não tenho dentro. Não quero morrer por fora, não tenho fora. Eu, quero ser os meus pés que andam descalços no chão como quando tinha dois anos, e quanto tiver oitenta quero que os meus pés, com rugas, sejam os mesmos pés descalços no chão como quanto tinha dois anos e meio. Eu serei sempre os meus pés descalços no chão com unhas pequenas, que não me levaram nunca a lado nenhum, mas que se fartaram de viajar. Porque eu sou os meus pés e os meus pés são a minha cabeça que viaja, e o mundo por onde viajei é a minha cabeça que nunca saiu do mesmo sítio.

5 comentários:

  1. tens razão, é escura e assusta!

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  2. 'Não há sal na estrada, não há abrigo a um desassossego constante, não há garagens.' gostei imenso deste inicio! *-*

    fico feliz por saber isso!

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  3. gostei mesmo! e agora vou voltar a postar imensa coisa! :)

    Sigur Rós - Samskeyti

    http://www.youtube.com/watch?v=K1cqn3UDmp4 (tens aqui o video)

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  4. Pareceu-me José Luís Peixoto, fez-me lembrar Fernando Pessoa, mas este texto é tão teu. gostei muito. muito muito. "Passa a chuva mas não passa a gente, a gente fica sempre, sempre no mesmo sítio, levando com as gotas que caiem do céu." gostei disto. "Eu não quero morrer por dentro, não tenho dentro. Não quero morrer por fora, não tenho fora." e disto. gostei do inicio e do fim. gostei muito. :)<3

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  5. isto está tão boooom *-*

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