21.4.10

quando não temos palavras, roubamos as dos outros de forma subtil.



(...) E dizer-te isto é dizer-te muitas coisas que não entendo, é dizer-te um céu vermelho em roda do cabeço do meu coração, é dizer-te o que sinto, sem que se possa dizer o que se sente. E isto que és dentro de mim ficará cristalizado no rosto em que me tornar. E não serás um ressentimento, serás a rapariguinha nova que espreitei a estender a roupa. Serás o que escrevi nos cadernos do meu desejo por ti. Os cadernos que decorei por serem as suas páginas a minha pele. (...) E, onde estiver, não poderei tocar-te, como nunca pude. E essa angústia será maior, porque nunca mais poderei ver-te, nunca mais poderei ouvir o teu silêncio e toda a esperança que um dia tive será nula. Morto, assistirei ao negro absoluto que nenhum homem pode suportar na vida. Nenhuma luz, nenhuma luz. Nunca nenhum homem suportou a escuridão sem nenhuma luz. E é para isto que tenho de caminhar. E poucos metros me separam da lonjura imensa deste sítio. Sofrer será a continuação de sofrer. A vontade que nunca tive, não terei. E os meus passos já não são meus, nunca foram. Tudo é o último. Os campos resistiram um dia mais, e o amanhã não existe. O céu vermelho será para sempre vermelho, e o outro céu que conheci será para sempre uma recordação do que conheci um dia.(...) Penso: sempre e nunca mais são o mesmo lugar. (...) Ainda há as searas para as crianças. Ainda há crianças. Guardem as lágrimas para um dia de mais alta nomeada. Guardem as lágrimas para o dia em que morrerem as searas nos olhos das crianças, para o dia em que morrerem as crianças. Hoje, morro eu. E eu morrer não é nada na ordem implacável do mundo.


José Luís Peixoto in, Nenhum Olhar

2 comentários:

  1. já li tantas vezes essa passagem do livro, que já sei quase de cor. ontem à noite, tava com insónias e então pus-me a ler o nenhum olhar, de novo. fico parva sempre que o leio. é tão perfeito. o josé luís peixoto é um génio!

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  2. Obrigada pelo teu comentário, é sempre bom saber que gostam do que estão a ler. hehe Quanto ao texto, hoje estou num dia anti-romantismo

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