19.10.10

P de palavras.


As cartas.
As cartas estão já perdidas na luz duma caligrafica já apagada, já pouco pessoal, já desenraizada.
As cartas.
As cartas já não são iguais, porque já não há quem as escreva à luz de uma imaginação acesa, na penumbra das horas altas da noite à luz de uma única luz dum candeeiro pequeno, e uma caneta de tinha permanente.
As cartas.
As cartas já não significam nada para ninguém, já perderam o seu sentido, já são duradouras demais, e hoje ninguém quer coisas que durem muito. Mas as cartas, as cartas têm outra mísitica, as cartas são outro encanto, têm outro charme.
As cartas.
Ninguém já escreve cartas, ninguém já perde tempo a escolher meticulosamente qual o melhor envelope, qual o selo mais bonito, quantos selos há, já ninguém faz isso. Hoje em dia se alguém ligar a selos é porque está na moda, mas cartas, essas ninguém as escreve.
As cartas.
As cartas a mim, lembram-me o meu avó a ir para a Alemanha em 1961 num autocarro da Wolksvagem, lembram-me as fotografias antigas e comidas pelos dias, de esse mesmo meu avô sofrendo com a neve na mesma Alemanha. As cartas a mim lembram-me as cartas que o meu avó escrevia da Alemanha, e que escreveu durante dez anos sistematicamente, até que a minha avó chegou a essa Alemanha também. As cartas a mim lembram-me amores, lembram-me os amores de 1961 quando todos emigravam, e lembram-me as despedidas. As cartas a mim lembram-me o meu pai a ir para a tropa, quando ele foi para a tropa e era jovem e tinha a vida pela frente.
As cartas.
As cartas a mim lembram-me eu perdida no sótão aos sete anos a ler cartas, quando ainda nem sequer sabia ler cartas, mas já as gostava de ler. As cartas a mim, lembram-me eu no sótão de novo em comemoração do 25 de Abril, a ouvir os vinis do Zeca Afonso no gira discos velho do meu pai porque era essa a minha forma de comemorar a revolução. As cartas, as cartas a mim lembram-me memórias, memórias do passado, já velhas, já sujas, já amareladas. Lembram-me eu com 11 anos a mudar de vida e a mudar de escola e a mudar de tudo e a escrever cartas. As cartas a mim lembram-me a minha professora de português, a que me ensinou a escrever, cartas. E que me ensinou a ler, e a significar e a escrever cartas.
As cartas.
As cartas a mim lembram-me tudo, lembram-me as cartas que eu escrevi dos sítios por onde passava, e lembram-me as cartas que recebia dos sítios onde passavam, e lembram-me os 13, anos a fugir pela janela para ir passear os pés sabe-se lá por onde, as cartas a mim lembram-me as vidas que eu vivi, e que os outros viveram e lembram-me as vidas que eu não vivi, mas que os outros viveram, como o meu avó a entrar no autocarro para a Alemana e a minha avó a despedir-se dele em 1961, e a neve na Alemanha que eu nunca vi mas que li nas cartas.
As cartas.


Quero receber uma carta, uma a sério, do coração, com orgulho pelo selo, com um envelope bonito, escrita com caligrafia pessoal, quero uma carta em folha de carta, não quero um postal com uma frase ridicula, quero uma carta, uma carta a sério, daquelas que já ninguém é capaz de escrever, porque já ninguém escreve, cartas.


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