30.4.11

o segundo texto de um daqueles que se tornou um dos meus livros favoritos começa assim:

Se acreditas no amor à primeira vista, nunca deixes de olhar

Humphrey Bogart e Ingrid Bergman terão sempre Paris. Eu terei sempre Tallin, na Estónia. Qual de nós não tem um amor forasteiro terminado numa lágrima perdida num aeroporto? Pela mão de Michael Curtiz nós teremos sempre aquela frase, aquele cenário africano e a imaginação de um olhar cruzado em qualquer lugar do mundo. And still, we will always have Paris...

Se acreditas no amor à primeira vista, nunca deixes de olhar. Quando chove, levanta bem os olhos e o chapéu-de-chuva, mesmo que voe ou te molhes. Quando o sol derrete a vista, usa óculos que não sejam escuros de mais. Quando deixas um país, garante que sorriste enquanto o visitaste. Quando abandonas uma cidade, certifica-te de que não deixaste pro lá um amor verdadeiro esquecido.
Levanta os olhos. Se semicerrares o olhar, serás fria por fora e sozinha por dentro. Esquece o chão, mesmo a mais belíssima calçada portuguesa não te merece a concentração, se acreditas no amor à primeira vista. Não percas tempo nos pormenores das tuas revisitadas dores, descendo a rua como se pairasses apenas e sem saber quem te rodeia.
Se acreditas no amor à primeira vista, nunca deixes de olhar. Encara os olhos frontais, directos, daqueles que entram numa máquina fotográfica e o fotógrafo sente-se espiado. Não lhes dês outra direcção senão o olhar do outro, sem curvar num arrufo de amantes à direita ou numa face vagamente conhecida à esquerda. Em frente, de frente. Não tropeças. Não cais. Nunca deixes de olhar. Nunca deixes que outro sentido te roube a atenção.

O melhor dos amores estrangeiros à primeira vista é não saber se serão avistados uma segunda ou terceira vez. É essa curiosidade apimentada e a agonia antecipada do fim que mal começara. O mundo transtorna-nos a barriga e afinal são só borboletas a bater as asas lá dentro. E cada segundo vale muitos mas não vale nada, está ali, ali ao fundo, do lado direito daquela casa logo, logo a seguir, não vês? O fim está logo ali. Mas não está em lado nenhum.

Tudo isto estava guardado naquelas vinte e quatro horas e mais segundo nenhum, que a viagem segue o rumo e não espera por ninguém. Mas se acreditaram no amor à primeira vista, e nunca deixaram de olhar, dar seguimento à viagem ignorantes da descoberta recente é cegueira idiota. Não porque produtora de muitas ideias, mas por não criar nenhuma.

O amor à primeira vista é pateta, mas é o melhor de todos. O amor à primeira vista é irracional, mas é o melhor de todos. O amor à primeira vista é igual aos outros. Só que chega muito mais depressa e sem alvitre. No amor à primeira vista desliza-se por uma duna de algodão doce, não se cruzam agendas para jantar um dia, faz-se um dia todo novo a partir dos cacos do coração que agora é inteiro; dão-se beijos à cinema como se estivessem num cartaz a anunciar o filme.

Mão com mão. Toda a gente sabe que os enamorados por amores à primeira vista e sobretudo quando ainda estão nas primeiras horas desses amores, andam de mão dada. Para não deixar o outro fugir? Para dar sossego à pele que reclama o outro através de todos os poros que ameaçam não respirar se não lhe sentirem a pele? Para agarrar com os dedos todos aquele momento que é único, ainda que o seu final seja serem felizes para sempre?

O amor à primeira vista, quando não se deixa de olhar nunca, é imprudente. É descuidado consigo, porque dá-se o cuidado todo ao outro. Imprudente.

Os beijos destes amores são especiais, são novos, são droga, são vício, são maravilha, são desastre, são um avião a cair-lhes aos pés e eles não largam os lábios, são beijos de um amor à primeira vista. Que sabem melhor por causa do bater das asas das borboletas lá em baixo, na barriga.

Atrás de um beijo vem sempre mais um, mas veio também o caminho de volta à civilização. Ou à solidão? Já não rodopiavam porque em silêncio perguntavam ao outro se queria repetir ou se mataria as borboletas. Ou se elas se suicidariam, também acontece.

Se acreditas no amor à primeira vista nunca deixes de olhar. E não recordes a prudência. Terás sempre aquele beijo batido por asas de borboletas.


em Curtas Metragens, Marta Rebelo

1 comentário:

  1. Adorei:

    O amor à primeira vista é pateta, mas é o melhor de todos. O amor à primeira vista é irracional, mas é o melhor de todos. O amor à primeira vista é igual aos outros. Só que chega muito mais depressa e sem alvitre. No amor à primeira vista desliza-se por uma duna de algodão doce, não se cruzam agendas para jantar um dia, faz-se um dia todo novo a partir dos cacos do coração que agora é inteiro; dão-se beijos à cinema como se estivessem num cartaz a anunciar o filme.

    * Adorei

    ResponderEliminar