23.5.11

Crónicas de Cov #1


Em casa de estudantes, há sempre loiça por lavar. Sempre uma cozinha pequena exausta dentro da sua própria desarrumação. Na maior parte das vezes é a Alemã que se impõe e nos diz que aquilo é uma vergonha, num intuito bastante maternal. É uma miúda porreira, tendo em conta a nacionalidade vincada que tem, inquestionavelmente correcta, nos modos e na vida. Come sempre devagar, cozinha sempre de vagar, limpa sempre a loiça devagar. É portanto realisticamente ponderada e poupada nos comentários. Fala somente quando tem algo verdadeiramente importante a dizer, mas quando fala não há margem para brincadeiras, ou é ou não é, assim lhe ditam as regas. Queixa-se muitas vezes da casa precária onde nos meteram a viver, na cidade pavorosa, diz. E às vezes encontro-a a falar sozinha, a pensar alto talvez. É uma miúda porreira, e sabe bem o que quer, não anda por ai a pensar na vida, pensa na vida para andar por ai. Gosto disso nela, esse sentido vincado de responsabilidade, na fase adulta que vai chegar, ou que já chegou. Às vezes consegue ser relativamente mimosa, já por duas vezes me convidou para ir à Alemanha. Disse-lhe que sim, claro que sim. Mas por dentro questionei-me sobre a verdade do convite. Nunca sei se me o diz porque terá prazer na minha visita, ou porque acha por bem dizer-me para lá ir. Da primeira vez foi quando estávamos a ver uns guias de viagens, disse-me; tens de ir à Alemanha. Eu acenei-lhe com a cabeça e esbocei um sorriso, nunca mais me disse nada. A outra vez foi aqui em casa, ia a festa a meio, estávamos relativamente alegres quando ao abraçar-me me diz quase em lágrimas; Tens de ir à Alemanha, sim? Tenho muito gosto que lá vás, depois mostro-te tudo, e tens de conhecer a minha mae, claro. Sorri-lhe verdadeiramente, e disse-lhe que ficava muito feliz com o convite, que iria certamente, pois era um dos meus desejos conhecer a Alemanha. Ela abraçou-me. É uma miúda porreira. Nunca lhe confidenciei muito mais da minha vida a não ser falar-lhe de Lisboa, e do Algarve. Às vezes trocamos impressões sobre a vida em Portugal e a vida na Alemanha. São vidas diferentes claramente. Depois à parte de falarmos das saudades que temos da comida das nossas mães e de como elas desempenham o papel de mães tão bem, guardamos o resto do tempo para criticar a casa velha onde vivemos. Porque as torneiras não fecham, porque as paredes têm bolor, ou porque ninguém corta a relva. Ela diz muitas vezes que não compreende. Eu também muitas vezes não compreendo; é uma vida de estudante em terras estrangeiras, e dão-nos o mínimo do conforto que nos podem dar, na esperança que fiquemos muito agradecidos porque estamos afinal, em Inglaterra. Não é bem assim, mas há que calar e comer, como se diz no meu país. A Alemã é uma miúda porreira, esguia, pouco alta e pele branca, olhos verdadeiramente castanhos e sorriso bonito. Diverte-te quando se tem de divertir, e quando dança, dança hirta, como tudo o que faz: com responsabilidade. Às vezes penso que seria se lhe desse um desvairo e desgrenhasse o cabelo, fosse para a rua gritar e abraçasse toda a gente num acto terno de loucura. Na verdade, nunca a imaginaria a fazer isto. É uma miúda porreira.

3 comentários:

  1. Eu amei este texto. Do inicio ao fim, palavras bonitas, já estás com saudades e ainda nem saíste daí :)

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  2. Adorei :')
    sim sim, vou para Londres :) estás a estudar onde?

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  3. fiquei apaixonada. quero um destes para o resto das personagens da tua aventura. para breve. obrigada. (x

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