19.8.12

O dia em que conheci Peixoto

tinha 13 anos. Entregaram-mo em mãos e disseram-me - Criança em Ruínas - eu não percebi o sentido. Peguei na criança e nas ruínas e levei-os comigo para casa, abri-os, desfolhei-os, tinha 13 anos e enquanto lia desenhava na cabeça personagens, sítios, casas decoradas por tipos diferentes, pessoas diferentes que haviam de viver nessas casas enquanto escreviam, enquanto me contavam as palavras que eu lia. Meses depois, voltei a guarda-los na estante, a criança, as ruínas, os sítios e as pessoas nas vidas que havia imaginado, fechei-os dentro do livro que ficou na estante e não os abri. Aos 15 anos, a trezentos quilómetros da estante onde dormia a criança em ruínas, entrei numa livraria, era Outubro e li a capa que dizia «Cemitério de Pianos», aproximei-me, sem lhe tocar, olhei para o piano velho que servia de imagem e pensei sobre que seria um livro com o nome de «Cemitério de Pianos». Lembrei-me de Tim Burton e algo como um qualquer Jack solitário a tocar piano numa casa grande e vazia. Peguei no cemitério e nos pianos, sem os abrir e comprei-os. Quando cheguei perto da criança em ruínas, dei o cemitério e os pianos a alguém que acreditei precisar de ler Peixoto, nunca li o livro. Aos 16 anos chegou-me o Antídoto em forma de anestesia, sem nunca ter voltado a abrir a Criança em Ruínas, tendo passado ao lado do Cemitério de Pianos, o Antídoto foi uma paixão violenta, provavelmente demasiado violenta mas inabalável. Foi depois do Antídoto que petrifiquei para Peixoto, um nome que dava corpo a alguém que sabia escrever. Que eu não fazia ideia quem era. Sabia que havia um nome e que aquele nome escrevia livros e que eu gostava de ler esses livros, escritos por alguém que tinha o nome que eu via nas capas de livros com nomes estranhos. Era só isso, e ser só isso bastava-me. Aos 17 anos entrei numa livraria que entrava quase todos os dias, como quase todos os dias, subi as escadas e cheguei ao piso de cima, como quase todos os dias demorei-me a ler todas as lombadas que estavam nas prateleiras, de todas as prateleiras, como quase todos os dias - nesse tempo, quando chegava ao piso de cima nunca tinha pressa, nunca havia horas, nunca havia compromissos, nunca havia nada, havia-mos só nós, eu e o piso de cima, às vezes alguém que ia comigo sob as mesmas condições, que eram habituais e eram aceites com alegria, nós e o piso de cima da livraria de quase sempre - foi aos 17 anos que li uma lombada que dizia Gaveta de Papéis. Tirei o livro da prateleira da livraria onde ia quase todos os dias, era pequeno e quando se abria tinha chaves e poemas e desenhos. Os poemas tinham nomes, nomes de cidades, onde eu nunca havia ido. Cheguei a casa com a gaveta e os papéis, abri a gaveta e li os papéis pela calada da noite e nessa noite foi amor. Foi amor aos países aonde nunca tinha ido, foi amor às personagens que já tinham ido a esses países onde eu não tinha, foi amor às histórias que inventei depois das histórias que li sobre esses sítios e essas personagens, foi um amor daqueles amores que não se esgotam, que não podem esgotar-se porque se inventam e reinventam, foi nessa noite que nunca mais fechei a gaveta e li durante as outras noites os papéis, repetidamente. Depois da Gaveta senti que devia lealdade ao nome que aparecia na capa dos livros com nomes estranhos que eu já tinha visto, mas mais que isso, devia lealdade à «Gaveta de Papéis», algo que não podia simplesmente sucumbir. Como nos grandes amores, procurei a Gaveta em todos os outros livros, qual mulher perfeita da juventude de algum rapaz pequeno, nada lhe fazia jus. Um dia, perto do mar, peguei em «Morreste-me» numa livraria pequena e desconhecida, como pequeno e desconhecido que «Morreste-me» era para mim, li-o ao sabor do mar, nesse dia, e doeu-me enquanto o li, doeu-me aquela dor de quando algo nos morre, que conhecia tão bem. Devastou-me tão completamente que fui incapaz de ler outra coisa depois de «Morreste-me», como qualquer prisioneira dentro da própria vida. Aos 18 anos, voltei à criança em ruínas, fechada dentro da estante havia já demasiado tempo, mostrei a criança e as ruínas da criança, e alguém decidiu que a «palavra p não é a primeira letra da palavra poema» e decidiu ler isso ao mundo. Foi bonito. Depois do verão, nesse ano, mudei de cidade, na casa onde vivi, haviam estantes com livros, numa delas «Nenhum Olhar» perdido entre nomes grandes, perdido e solitário. Peguei no olhar que era vago, e com o olhar nele li as primeiras páginas. Fechei o livro, tudo ali era verdadeiro demais, tudo ali era conhecido e real, não consegui continuar. Poisei o livro com o olhar vago em «Nenhum Olhar», poisei-o ao meu lado na mesa, nunca o voltei a abrir.
Quando fiz 19 anos e decidi mudar a vida, o «Livro», tinha acabado de ser escrito, um dia depois ia-me embora. Corri como quem corre pela vida para encontrar centenas de «Livro(s)» nas estantes, qual boom dos anos 60, quando no fundo só queria um «Livro» que fosse meu no meio de tantos outros. Quando entrei na livraria das paredes de vidro, fui em modo automático até ao «Livro» era só aquele e em modo automático o comprei, no dia a seguir fui viver para outro país e o «Livro» foi o único livro que levei. Poucos meses depois, nesse país onde vivi, chegou-me «Cal» pela ranhura da porta de alumínio, sob forma de recompensa, que alguém muito longe, pensou merecida. Senti-me uma traidora, o desejo de ler «Cal» era grande, era grande porque eu conhecia a cal das paredes da casa da minha avó, conhecia a lembrança dela a pintar as paredes da casa com uma cal branca e um cheiro de uma cal que não é igual a coisa nenhuma. Senti-me uma traidora à «Cal» e à cal da casa da minha avó porque ainda não tinha lido o «Livro», e neste caso não podia ler o «Livro» e a «Cal» ao mesmo tempo, neste caso, o «Livro» e a «Cal» não se podiam misturar, nem por acidente. 

O dia em que conheci Peixoto, foi um dia frio de Dezembro, já as ruas estavam com luzes às cores. E era de manhã e a porta estava fechada e a sala estava vazia. E eu entrei, entrei com o medo e a adrenalina no corpo. E quando entrei não vi ninguém e quando vi não era ninguém conhecido. Um homem, aproximou-se, loiro, pele imaculadamente branca, não era do tipo dos poetas que «quando chove não se molham», não tinha «calças de poeta, camisa de poeta e casaco de poeta», nem o imaginava a ir ao supermercado. Quando falou a sorrir, perguntou-me se eu era eu, disse que sim, - efectivamente, eu era eu - estava ali, para ouvir alguém que era alguém que eu conhecia dos livros com nomes estranhos que li ou que não li, durante tanto tempo. Atrás do homem loiro de pele imaculadamente branca, o corpo que dava nome às capas dos livros com nomes estranhos que eu li ou que não li, apareceu diante de mim, simples, e sorriu-me ao dizer-me olá e conversámos. 

O dia em que conheci Peixoto, não foi «o dia triunfal da minha vida», esse será, acredito eu, por algo triunfal que faça. O dia em que conheci Peixoto, foi um dos dias mais felizes da minha vida estrangeira naquele país longe. O dia em que conheci Peixoto foi o dia em que tinha 13 anos e me deram para as mãos «Criança em Ruínas», foi o dia em que descobri a «Gaveta de Papéis», foi o dia em que morri centenas de vezes com «Morreste-me». O dia em que conheci Peixoto, foi o dia da minha vida em que não fiz nada de triunfal, mas foi o dia em que conversei com o homem que dava nome aos nomes estranhos das capas dos livros que eu li ou que não li, ou que hei-de ler, foi o dia em que estivemos demasiado longe, ali tão perto. 
Demorei um ano a ler o «Livro», li-o passando pela mesma França e pela mesma Espanha, não da mesma forma, cheguei à última página quando cheguei ao meu país, era de manhã muito cedo e estava calor. Fechei o livro depois de muitos dias e muitas coisas, com o coração pequeno, por ter um Livro tão grande.

Não esperei pelo «Abraço». Eram demasiados em todo o lado e demasiados a precisarem de um. Não esperei pelo abraço, talvez espere amanhã. 

1 comentário:

  1. Só por causa disto, hei-de ir tirar da prateleira a casa e a escuridão, ainda a meio :)

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