20.10.14

Tenho um poster com a ponte de São Francisco na parede, que é quase a mesma coisa que ter a ponte de Lisboa ao fundo da janela. Só que não. Podia ter um poster com a ponte de Lisboa na parede, mas ter a de São Francisco, dói-me menos. Um dia atravessarei esta ponte, mas em tempo real. Lembrar-me-ei então que me disseste não olhes para trás! Mas vou olhar, oh, ainda muitas vezes. As lembranças hão-de me acompanhar avozinha, hei-de sempre olhar para trás. Abro o frigorífico e penso que aquele é o último frasco de doce de tomate que fizeste, que me fizeste naquela manhã, contra tudo e contra todos, só para me alimentares este desejo. Obrigada. Nunca ninguém há de fazer outro doce de tomate como este, eu só gosto do teu, disse-te. É verdade, só gosto do teu. Depois deste, não há outro, jamais. Como já não há outras migas, outros cafés, outras torradas. Há coisas que são exclusivas, e este é o último frasco de doce de tomate. Estarás em paz? Gosto muito de ti, grito mas não ouves. Será que ouviste antes? Naquele dia, quando te pintei as unhas, o verniz chama-se final feliz, terás finalmente encontrado o teu? Não consegui mais. Houve muitas conversas por ter, houve muitas histórias que permaneceram, e permanecerão agora, só contigo. Não te apoquentes, te-las-hemos um dia. Sei que não consegui elevar-me à altura das tuas expectativas, eram grandes. A vida às vezes corre mais devagar do que pensamos, às vezes, mais depressa. Levaram-te sem tempo de te mostrar a cidade, sem tempo de voltar no natal com os chás que encontrei numa loja antiga, sem tempo de te dizer que já fui tomar cafés com amigos. Levaram-te sem tempo de eu ter tido tempo de te dizer que sim senhora, um dia caso-me, um dia tenho filhos, um dia terás bisnetos, um dia até eu serei avó. Levaram-te eu não tive tempo de organizar a vida como querias, como me dizias, arranjei o carro, mas não tivemos tempo de passear. Gosto muito de ti, avozinha. Quando voltar já não estás, quando voltar já não te levo os chás, nem os chocolates (que comias às escondidas), nem os postais... Quando voltar já não te posso levar nada, nem te posso levar a lado nenhum, mas olha, sabe que te levo aqui, aqui comigo, à beira desta cama como à beira desta vida, ninguém fará melhor doce de tomate do que tu. Gosto muito de ti avozinha. Agora vai, olha-nos de cima, e sorri, nós vamos conseguir, sorrirei de volta. Adeus, até logo. 

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