23.2.10

Ver.

"Já regressei e ainda não cheguei. Porque estou a escrever, a rever, a reescrever, a voltar a sentir, a repetir, a assustar-me, a maravilhar-me, a sentir horror, a querer fugir, a querer voltar, a não querer acabar. De repente tenho saudades tuas sem saber porquê. Esta noite, em Lisboa, pareceu-me que estava numa aldeia ao abandono. Faltavam corpos por metro cúbico. Sinto-me só, passeio pelas ruas por onde já passei mil vezes e cruzo-me comigo. Janto com um amigo que está à espera de partir para Barcelona continuamente. Falamos de raparigas que se vão casar e nos deixam mais sozinhos. Juramos vingarmo-nos. Mas é só conversa de amigos desamparados agarrados às sombras das paredes.

(...)
Não vale nada correr para nenhum lado.

Ficar por aqui eternamente mudo, é um destino. O mar bate muito ao longe. Todas as coisas foram feitas para serem desmembradas e depois reconstruídas. Entra aqui o artífice com as suas mãos de prata. De natural tudo nos falta. Uma máquina empina-se e larga uivos. O artificial é um logro, um produto imaginario. Somos feitos do pó que deixou de ser feito. Entertanto perdeu-se a palavra. Isto assim. Mais vale escapar para o lugar onde não seremos vistos. A traição que nos agarra pelas costas. A alegria breve. O que ficou por dizer. Os dias felizes. Isto assim.

(...) As sombras de um abraço inacabado, de um nó dado para decadência impreparado - por dentro
nylon, por fora desenfreado. Ovos estrelados com açúcar, banana com queijo e marmelada. Merlot e mais uma veia desatada, mais uma artéria predestinada.

Lembro-me que antes de vender o piano da minha bisavó bebi de um copo que sobre ele estava em equilíbrio precário, desde 1860, graças a uma linha de passajar quase invisível. Agora, fiel à mesma linha, deixo-me intoxicar lentamente por tinta azul e guardo para ti um resto de
kisu, ao som dos grilos miniatura, chá de jasmim e do meu salto em altura. Deste pulsar arrítmico com um punho de seda em cada mão, sem diapasão. A cal queima. Posso escrever o teu nome setecentas vezes e pensá-lo em alemão às vezes. Mas falta-me uma farda para me equilibrar. Falta-me uma caixa de fósforos para me sossegar. Estou na minha proveta. Mais? Só quando os exames eram finais, os copos forem virtuais e as chamadas telefónicas antinaturais.

Fortíssimos são estes ventos. Tufões, bronquites e outras convenções. Entre o céu e esta cidade instalou-se uma densa capa de modernidade, inamovível, tal a carga de futuro sem montagem e sem alinhamento prévio. Tenho os pés a arder, sem querer. Ainda sei o código das tuas árvores. E ainda não deixei de fumar e de viver."

Asfixia, Pedro Paixão

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