23.4.10

Cheguei a Lisboa, mas não a uma conclusão.

Enganos de alma, tudo isto. São enganos de alma. Hoje o vento não soprou muito forte. Quando saí de casa ainda pensava que ia chover. Não choveu. Era melhor que tivesse chovido. O céu guardou as lágrimas, engoliu-as em seco, enterrou-as. Era melhor que as tivesse arrancado com as próprias mãos e Lisboa fosse um mar de tristeza e fúria, a ver se os humanos se afogavam de uma vez por todas nos seus sofreres que estão amarrados ao peito. E quando a água secasse que eles secassem também e fossem ser felizes, todos felizes. Hoje não choveu. E eu não chorei o meu peito, não chorei a minha cabeça, não chorei as minhas mãos nem os meus pés. Hoje não choveu e eu não chorei, como nunca chorei, como nunca choro. Hoje vi o céu e estava turvo, como eu estou turva. Como eu com chuva dentro de mim e nuvens negras a pairar-me o alto da cabeça. Não há triunfos. Não há batalhas. Não há guerras. Não há nada. O eu é este vazio este encher de nadas cheios de coisas nenhumas que nos transtornam como se fossem de facto alguma coisa. Não são. E assim me engano, de alma. Já não chove em Lisboa e eu já não choro, como nunca chorei, e como, nunca choveu de verdade em Lisboa. Lisboa não se afogou em lágrimas porque hoje não choveu, e se amanhã chover não será a mesma coisa. Vamos morrer em conjunto. Vamos matar-nos. Matar-nos a incompreensão uns aos outros, matar-nos o mal. Hoje houve mal em Lisboa. E hoje não houve Lisboa. Lisboa dissolveu-se na vossa negação. Enganos de alma. Lisboa que profana és. E cegos que te atravessam as entranhas. E tas atravessam porque não vêem, porque tu os ofuscas. Oh tua beleza maldita. És rainha nefasta de todo o meu esplendor apodrecido. De todas as minhas emoções retraçadas e repassadas pelo sangue dos outros. Outros, outros, dos outros. Para que quererei eu sujar estas mãos que são minhas? Porque me deixas suja-las como se das mãos de um bandido se tratassem? Estas mãos, estas mãos nunca minhas, mas tuas. Não me conduzas mais, que eu bons pés tenho para andar. Não me conduzas mais que eu já me perdi em ti vezes suficientes e hoje nem sequer em ti choveu. Antes tivesse chovido, e antes tivesse eu chorado. Nem em Lisboa choveu, nem em Lisboa chorei. Enganos de alma. E as entranhas a vomitarem-me o espírito. E eu a beber a meia noite em tragos azedos, vis, cruéis. E eu, a ser sempre a mesma coisa nenhuma, a ser sempre podridão a ser sempre lama nos pés descalços com que ando na estrada. Sempre eu. E se eu não existisse nunca eu, nunca nada, nunca isto nem aquilo. E os outros no mesmo sítio em que estão ou em sítios diferentes, a adormecer com a última balada, o último toque, o último grito de revolta antes do primeiro sono. E se eu não existisse o universo era, outra coisa ainda. E isto tudo era, coisa diferente. Tudo na perfeita sintonia do meu eu não existir mais, como se nunca tivesse existido de facto. Mas eu não existo de facto, isto são tudo enganos de alma. Hoje não choveu em Lisboa, eu não vi chover, e eu não chorei porque não choveu. Hoje não choveu em Lisboa mas haja alegria, que a noite é de contentamento. Vamos sorrir ou chorar.

4 comentários:

  1. ainda bem que existes! ainda bem! gosto muito de titulo, gostei ainda mais do texto :) merece ser lido esse texto ** <3

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  2. Que texto mais pesado e bonito, Emília querida.
    É, Lisboa devia chover quando é suposto.
    (Sim, aquela frase é mesmo ameaçadora! Aconselho-te mesmo a ver.)

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