24.5.11

Crónicas de Cov #2


Ele chegava sempre com a loiça da cozinha por arrumar, sempre suja em cima do balcão ou deixada ao abandono no lavatório. Sempre espalhada, vagabunda na sua própria confusão. Ninguém a queria. Ele chegava sempre com a loiça da cozinha por arrumar. Quando estava arrumada, nunca chegava. Nunca viu a cozinha arrumada e a loiça limpa, de todas as vezes que lá foi (maus timmings?!), mas ela existiu. Eles eram dois mundos desiguais: Ele de pés assentes na terra, roupa lavada e um gato à porta de casa, emprego, carro, plasma na sala, e batatas no quintal. Sem excessos, correu o mundo. Conheceu o que quis conhecer e depois voltou a casa. Voltou sempre a Casa e nunca abandonou nenhuma parte da vida mas faltou-lhe sempre algo. Viveu com a sua possível alma gémea dois anos; não resultou. A alma gémea foi-se embora e ele ficou-se pela casa. Conheceu o mundo, e ainda assim o mundo era-lhe vago. Nunca lhe brilhavam os olhos quando lhe falava das viagens mas esboçava sempre um sorriso. Inteligente, responsável, ponderado. Bom espírito. Ela gostava disso nele; dizia-lhe sempre que tinha a vida feita: casa, carro e um gato. Ele ria-se. Via nela qualquer traço de juventude poderosa, na idade em que ainda se pode tudo, e gostava disso. Ela era livre, muito livre, demasiado livre, e ele gostava dessa liberdade. Ela ria-se. Fumava cigarros (para esquecer o amor?) e bebia maritini (para esquecer o tempo?) e ficava com ele no embalo dos momentos que sabia vagos e únicos. Ele dizia-lhe que ela era um espírito livre. Ela sorria-lhe. Achava-lhe piada. Ele dizia-lhe que gostava dos seus olhos verdes, ela dizia que ainda bem que acertara na cor. Ele dizia-lhe que gostava do seu corpo, ela dizia-lhe que era por ser do sul. Ele dizia-lhe que ela era bonita, ela dizia-lhe que era da maquilhagem. Ele sorria-lhe com ternura. E ficavam assim, eternos amantes às portas da meia noite. Assustados com o desenlace do tempo naquelas almas perdidas, encontradas uma vez, para outra serem separados e não se encontrarem (quiçá?) nunca mais. Assim se fazem os caminhos. Eram dois mundos desiguais: Ela sempre com a cabeça no sonho, no ar, na utopia, sem nenhuma resolução prática, astuta, coesa, não acreditava na matemática, mas acreditava na originalidade, na liberdade de expressão, na boa disposição de espírito. Amontoava a roupa ao redor do quarto e lavava-a quando a máquina estava livre, nunca tinha dias certos, nem horas marcadas para nada. Vivia por impulsos, nunca por compromissos na agenda. Nunca foi muito mais longe do que os dois ou três países que estão à volta do seu, mas sonhava firmemente correr o mundo todo. Tinha espírito aventureiro, mas nunca se aventurou. Nunca soube bem onde era a Casa. Tendo tantas, nunca conheceu nenhuma a fundo. Mudou-as tantas vezes que deixou de as ter e nunca preencheu esse vazio de não saber de onde vinha. Nunca teve medo de deixar coisas para trás, sempre se habituou a deixa-las, não era coisa que lhe custasse. Sentia com verdade que se as coisas tivessem que permanecer com ela, permaneceriam, e isso ajudou-a a partir de todas as vezes. Ele nunca percebeu esse desapego das coisas nela, a facilidade com que as deixava e partia, e ela nunca lhe disse que isso lhe custava sempre a vida. Ela nunca quis que ele soubesse. Era utópica mas gostava de sentir o mundo, sentia-o pelos cheiros, pelos tons, pelas texturas, ele gostava disso nela: aquela entrega à vida que nunca havia visto tão profunda. Ela ensinou-lhe a cheirar o café em pó pela manhã, ele fazia-lhe chá. Gozavam um com o outro, sempre, os mundos eram diferentes, mas isso fazia-os rir. Fazia-os sempre rir, na tentativa de apagarem o futuro. Ela dizia que não queria fazer planos para a semana que vinha, ele dizia-lhe que queria passear com ela. Ela dizia-lhe que não acreditava no futuro e que os planos logo aconteciam, ele ria-se, mas desejava que o tempo passasse mais depressa até que a visse de novo. Ela também. Mas tinha medo que passasse depressa demais, gostava do sonho, era bom. Ela tinha sempre medo, medo do futuro, terrível. Consumia-a por dentro, tinha medo de se ir embora e que ele se esquecesse, ou que nunca mais o visse, mas nunca lho chegou a dizer. Vivia por isso todos os momentos, da melhor forma que conseguia, nunca pensava do depois, o depois eram só os próximos cinco minutos, era a sua maneira de o recordar. Ele ria-se e dava-lhe beijinhos na bochecha, ela passava-lhe a mão no meio do cabelo desenhando rotas. Ele sorria. Ela tinha cabelo liso, ele não. Ela pintava sempre as unhas de uma cor diferente, cada vez que se encontravam, a cor das unhas dela era sempre uma surpresa. Ele brincava com isso. Ela ria-se. Dizia-lhe que as unhas eram para ser pintadas, pois há que dar cor à vida. Ele ria-se. Achava-lhe piada. Ela nunca soube até que ponto, mas deixou-se estar, nunca lhe perguntou. Ela falava-lhe sempre no seu país e os olhos brilhavam-lhe. Ele via sempre esse brilho no olhar, mas nunca o entendia. Perguntava-lhe muitas vezes os porquês, ela nunca os sabia responder. Dizia-lhe que não havia porquês, era amor. Ele sorria, mas nunca chegou a perceber o enamoramento. Sonhava ir a Barcelona, e falava-lhe sempre nisso, ele já havia lá estado, e dizia-lhe que era um lugar para ela. Já toda a gente lhe o tinha dito. Ela falava-lhe sempre em Barcelona, nunca havia lá estado, e via-se sempre lá. Ele mudou a cidade do relógio da cozinha onde antes estava Dublin, para Barcelona (para se lembrar dela?) e ela riu-se. Eternos na vida. Distantes nas almas. Ela disse-lhe adeus, ele abraçou o gato, ela sorriu-lhe, ele acenou-lhe. Uma lágrima correu no embalo da despedida, nunca mais se viram.

2 comentários:

  1. Puseste-me com as lágrimas à janela, um sorriso bôbo e um coração apertadinho. Está tão tão bonito. $

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  2. tão mas tão bonito.
    não me importava de ler um livro sobre eles os dois =)

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