7.6.12

era pequena e sonhava



Era pequena e na altura via ainda televisão estrangeira pela parabólica que estava em cima do telhado. Não era como hoje mas não deixava de ser pior só por ser diferente. Era pequena e via televisão pela parabólica, apanhava canais em línguas estranhas que não entendia, mas gostava de ver as imagens. Deve ter sido por essa altura que começou este desejo insustentável de conhecer as coisas, o mundo. Era pequena e via televisão estrangeira pela parabólica que estava em cima do telhado. E imaginava um mundo maravilhoso depois das quatro paredes da casa alta onde vivia. Era pequena e sonhava. Tenho a certeza que foi por causa da parabólica, que estava em cima do telhado, que tive esta sede de partir, com destinos ou sem destinos. Era pequena e sonhava. Comecei a sonhar por causa da parabólica que me mostrava imagens estrangeiras, depois tive vontade de as conhecer. Era pequena, tinha para ai uns cinco anos e via televisão estrangeira. Tive uma coleção de cassetes de vídeo, sobre a ciência toda do mundo: das árvores aos peixe-gato. Via-as depois do Dragon Ball e de uma ou duas cassetes da Disney, ao sábado de manhã. Não fiquei mais sábia, mas fiquei mais curiosa. Não consigo explicar o que foi construir os anos belos de uma infância, já perdida, em cassetes de vídeo, filmes estrangeiros em línguas estranhas ou os canais da televisão espanhola que apresentavam programas infantis. Sei porém que sem isso não teria construído esta sede de viver o mundo. E se hoje a sinto é certamente graças à parabólica que estava em cima do telhado e me mostrava o mundo. Lembro-me de quando, numa dessas manhãs de filmes, apanhei um choque no vídeo lá de casa. A partir daí fiquei com medo de meter a mão dentro do vídeo, então, desenvolvi uma estratégia: comecei a meter as cassetes no vídeo com os pés.  O que resultou bem até ao final da infância, quando cai no erro de me achar crescida demais para o continuar a fazer. 
Lembro-me de estar sentada no sofá no dia em que a princesa de Inglaterra morreu, nunca mais me esqueci dessa tarde. Eu não sabia ao certo onde era a Inglaterra, nem o sítio onde a princesa de Inglaterra tinha ido jantar mas, lembro-me do carro preto. Fiquei triste nesse dia; eu estava no sofá e a minha mãe lavava o chão da sala com sonasol verde. Lembro-me de me ter caído uma lágrima e do cheiro do sonasol verde. Pensei que era triste uma princesa morrer assim. Era pequena e na altura, como todas as pequenas, sonhava casar com um dos príncipes. Mantive esse crença durante algum tempo.
Quando chegou o DVD perdi uma parte de mim. As minhas manhãs de sábado dissiparam-se; as cassetes sobre o mundo ficaram com pó e, as da Disney, disse-me a consciência, para as partilhar com os meus primos mais novos. Eles também deveriam conhecer a força da Mulan que cortou o cabelo com a espada ou chorar com o Simba quando o pai morreu. Disse-mo a consciência (na altura ainda tenra) e eu, concordei. Com uma angústia que, não sendo por mal, magoava. Dar parte da minha infância a outros mais novos que eu, consistia suster algumas lágrimas para não dar parte fraca. Não dei.
Depois, a parabólica que estava em cima do telhado, deixou de funcionar. Foi quando apareceu outro tipo de televisão. Os meus canais de línguas imperceptíveis desapareceram e eu desapareci um bocadinho com eles. 
Vivi sempre com uma esperança diferente dos da minha idade (fosse qual fosse a idade). Tive sempre esta sede de viver para conhecer as coisas do mundo. Intrinsecamente sei que foi pela parabólica que me mostrou as mais belas imagens da minha infância. Intrinsecamente, nunca mais a esqueci. 
Hoje, continuo com esta sede de viver o mundo. Já não vejo televisão. Nem os filmes da Disney. Nem documentários sobre a Terra. Hoje, continuo com esta sede de viver o mundo mas, leio blogues em vez de ver televisão, vejo imagens de outros sítios em ver dos canais da parabólica, e sonho. Sonho com esta sede de viver o mundo, com a mesma força, com a mesma paixão, com que a sonhava em pequena. Esta sede de viver o mundo que sempre me fez ser diferente dos da minha idade, ainda faz, todos os dias... 

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