10.4.13

coisas de cá

O meu avô sabia fazer cestos de cana, todos os homens da aldeia sabiam. Iam ao rio, na margem, apanhavam as canas verdes, traziam-nas arrastadas até à garagem alguns, outros até à rua em par de casa. Sentados na cadeira de palha e, de faca afiada na mão descascavam as canas em gestos largos e rápidos, cortavam-nas a meio e lá começavam a ciência de fazer cestos. Sei isto porque muitas foram as horas em que me sentei ao lado deles de faca na mão a querer fazer cestos, nunca mo permitiram. O meu avô morreu, todos os homens da aldeia morreram e com eles morreu a arte de fazer cestos de cana. A sabedoria de apanhar, raspar e cortar as canas e a ciência de as entrelaçar uma nas outras. Morreu a sabedoria aqui há um par de anos e eu que estou viva, cresci sem ter aprendido a fazer cestos de cana. Cresci sem ter aprendido qual é o ciclo da terra, cresci sem ter aprendido a fazer as migas que a minha avô me fazia aqui há muitos anos,cresci sem ter aprendido a fazer meias de lã, cresci sem ter aprendido a enchertar árvores, cresci sem ter aprendido a fazer mel, cresci sem ter aprendido a concertar sapatos, cresci sem ter aprendido as mezinhas para a constipação, cresci sem ter aprendido. Cresci por observação, sei que cresci sem ter aprendido porque vi tudo o que não aprendi diante dos meus olhos. Cresci com a morte de tudo o que não aprendi até os outros morrerem e essa é uma tristeza sem par. Ver morrer a sabedoria das coisas a que já não se dão valor, ver morrer parte de mim, da minha natureza, do meu legado. Ver assim morrer o mundo aos poucos, porque hoje todos crescemos doutores e eu não quero crescer doutora. E se a vontade não me morrer também, hei-de fazer meias de lã para me aquecerem os pés, que me aqueçam a alma primeiro. 

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