Comecei o ano a beber
vinho tinto, ainda me lembro da festa. Uma casa cheia de artistas de todos os
feitios, e algum frio quando abriam a porta para fumar. Fiz mais uma festa de despedida poucos dias
depois, porque me despedi mais uma vez. E poucos dias depois, enchi de novo a
mala preta com os habituais 20kg de vida, e zarpei, como dizia o outro. Antes
de chegar ao destino, fiz uma viagem, dentro da viagem que fiz. Reencontrei
amigos no norte de um país frio e chuvoso. Acantonei dentro de uma casa
estranha com corpos conhecidos durante um par de dias, e fiz um piercing no
nariz. Depois parti para o quase sul do mesmo país sem quente. Construí-me do
zero. E durante longos meses, reconstrui-me do zero. Fiz tudo de novo. Ergui
um bom castelo, ninguém diga o contrário. Observei muitos quotidianos, e
cheguei a várias conclusões. Conheci-me melhor por observação alheia. Aprendi
a estar. Posso dizer que cresci em todas as noites que vivi sozinha dentro de
uma casa estrangeira e uma cidade estranha. Posso dizer que a solidão me fez
crescer. Com isso, tornei-me também pior, mais fria, quieta, sossegada, mais
consumista, mais politicamente correcta, e menos eu. Parece que
passaram 20 anos, mas passaram só uns cinco meses. Passei
a engolir os sapos e a secar as lágrimas antes de espreitarem. Os dias do longo
inverno tornaram-me um velho lobo solitário. Escrevi muitas cartas, e enviei-as
para muitos sítios do mundo, recebi muitas respostas. Fiz uma viagem ao país
vizinho. Trabalhei durante muitas horas, dormi muito poucas. Não considerei
que fosse exploração; corri por gosto, cansei-me, mas valeu a pena. Voltei
depois, esperei muitas horas num avião que parecia não me querer deixar partir. À força, lá tornei. Entreguei um relatório as páginas da minha vida estrangeira, e foi considerado mal escrito. Destrocei-me. Vi duas pessoas casarem-se em
inspiração árabe- Vesti-me de cor de rosa choque, e um boquet de
noiva caiu-me nas mãos. Parti-me aos bocadinhos por ai. Fiz uma viagem a outro país.
Casei nesse país, a primeira amiga estrangeira, com o homem da sua vida. Esperei
que fossem felizes para sempre. Ganhei outra família estrangeira, lá longe,
onde se bebe radler. Passeei por uma cidade estrangeira, comi coisas
esquisitas e voltei a casa. Procurei por muitos sítios que fossem a Casa,
encontrei tantos quantos os que me foram dando, mas nenhum deles foi ideal.
Tirei a carta de condução de carro. Fiz as pazes comigo. Aprendi a olhar-me ao
espelho. Comprei um bikini preto e usei-o triunfalmente. Revi amigos antigos,
encontrei ao acaso outros amigos antigos, revi prioridades. Fui a uma festa das
cores, colori-me por inteiro. Guardei algum do passado no passado e segui. Não
deixei remorsos. O verão acabou, fui para a cidade encantada, conheci
estrangeiros, festejamo-nos. Fiz jantares com 7 nacionalidades diferentes. Por mero
acaso embarquei num intra-rail pela casa de amigos. Vivi Coimbra em tempo de
latada, e passei o testemunho académico a outro membro da família. Foi no Mondego que me despedi da capa. Morreu-me uma amiga. Vi-a inerte em cima de uma maca hospitalar e em silêncio
disse-lhe adeus. Mas nunca consegui dize-lo em voz alta. Encontramo-nos em cima
do Tejo, chorámo-la, e deixámo-la ir. Foi. Tirei a carta de condução de motociclos.
Vi morrer a última das mulheres da minha vida, semanas depois. Foi nesse momento que deixei de sentir. Cambaleei para sul, dormente,
e voltei para a cidade encantada, oca. Fiz novamente uma mala, e tornei ao sul.
Estive na casa onde já não existe nenhuma das minhas mulheres, e não senti nada.
Fui mais a sul. Para saber que o cancro, esse filho da puta, atacou mais um de
nós. Reencontrei amigos antigos, sorri, sem rir. Aconcheguei-me. Sonhei todas
as noites. Acordei todas as manhãs com dores na alma. Que ainda dói. Aprendi que o que falta é amar (porra)! E hei-de acabar o ano a beber vinho tinto, ou outra coisa qualquer.
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