22.1.14

Eu não quero uma casa no campo, como a Ellis Regina. Quero uma casa, numa cidade qualquer, em qualquer parte do mundo. Quero ter as chaves dessa casa, que pode ser velha e ser rude, mas que existirá na minha realidade, e no meu porta-chaves, comprado em qualquer cidade europeia. Eu não quero uma casa no campo, quero uma casa numa cidade qualquer, mas que tenha sempre a porta aberta como as casas do campo, nesse campo onde vivi tantas vezes, e de onde tantas vezes vi entrar e sair gente. Eu quero uma casa, numa cidade qualquer, que pode ser velha e ser rude, mas que terá uma cozinha larga, onde caibam todos para jantar. Os todos que podem vir de todos os pontos cardiais. Hei-de os sentar à mesa e de lhes cozinhar qualquer coisa. Mas à hora de pôr a mesa, não seremos só cinco como no poema do Peixoto, seremos mais. Sentar-nos-hemos diante de lugares toscos, com pratos de tamanhos diferentes e copos de formas desiguais, não teremos toalha, mas teremos vinho tinto, ou sidra, ou cerveja. Conversaremos, em idiomas particulares, com as palavras e com o corpo todo, em todas as formas possíveis, embriagando-nos uns nos outros pela calada da noite. Eu quero uma casa na cidade, numa cidade que seja boêmia, e me faça ser capitã da minha vida, do alto de uma bicicleta a pedal que estará encostada à porta, pronta para partir. Eu não quero uma casa no campo. Quero uma casa na cidade. Uma casa com escadas e portas altas, com os livros que fui colecionando ao longo da vida, nas estantes ao longo do corredor. Eu quero uma casa quente nos invernos frios, e mantas caídas ao redor da cama quando acordar descalça pela manhã. Quero uma casa que tenha chás e cafés e até quem sabe, chocolates quentes. Onde hei-de fazer crepes, e cupcakes, mas onde haverá de me apetecer sempre o doce de tomate da avó. E quando for a vez dos dias quentes, hei-de continuar a beber chá, hei-de comer mozzarella ou salmão fumado, mas hei-de querer sempre comer gaspachos. Passearei de mãos dadas, e hei-de voltar a sentir borboletas como doenças a corroerem-me o estômago. Morrerei de amores outras mil vezes e continuarei a viver na mais pura forma de sentir. Hei-de abrir a porta da minha casa estrangeira, nessa cidade desconhecida, e hei-de olhar para as fotografias antigas da minha história. Apoderar-se-ão então de mim essas malditas saudades, que ninguém ainda traduziu, e por isso, hei-de sentir todo o vazio de ter renunciado à pátria. Com a dor das saudades, hei-de ir à cozinha, hei-de erguer a sertã e hei-de fazer migas, como se faziam antigamente. Hei então de me enrolar na manta de retalhos do Algarve para me lembrar porque raio estou ali. Hei-de sorrir perante as migas e o chá, ou o café preto, e como em pequena, falarei em voz alta, chamando-me à razão: porque sou do mundo caraças. Tendo sido toda a vida lusitana. Como a Capicua, quero uma casa no campo, que pode ser na cidade, mas tem de ser de verdade, mesmo não tendo morada.  

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